
“Mudei de carreira, mas o propósito é o mesmo”
Jeane Tsutsui, nova presidente do grupo Fleury, conta como passou de médica a executiva –e o que está fazendo à frente de uma das maiores transformações da história da empresa.
"Eu gostaria de reforçar o quanto eu fico feliz de agora na pandemia ver as discussões de valorização da ciência e do quanto conseguimos evoluir, agora já na fase de vacinação, graças a todo esse esforço da ciência", diz a médica Jeane Tsutsui (Foto: Divulgação )
Em abril, ao assumir o comando do grupo Fleury, a paulista Jeane Tsutsui atingiu o ponto alto de uma ascensão profissional bem diferente do que ela imaginava quando deixou a faculdade. Formada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, com doutorado e pós-doutorado em cardiologia, ela começou a carreira na empresa como médica em 2001. Embora radical, a transformação foi consolidada aos poucos ao longo de mais de uma década. A virada começou há 14 anos, quando ela assumiu a diretoria de pesquisa e desenvolvimento. No passo seguinte, passou a ocupar a diretoria de negócios em 2018, como braço direito de seu antecessor na presidência, Carlos Marinelli. Como parte de sua formação como executiva, Jeane Tsutsui fez um MBA pela FIA, além de outros programas de formação em escolas como de negócios da Universidade Harvard, no MIT e em Wharton, na Universidade da Pensilvânia.
No novo cargo, sua missão é justamente acelerar outra transformação, dessa vez nos negócios do grupo Fleury, criado em 1926 como um laboratório de diagnósticos. Com receitas de R$ 2,9 bilhões em 2020, a companhia avança na diversificação da oferta de procedimentos médicos como cirurgias e a ampliação da clientela com plataformas digitais. Para ela, essas mudanças tanto na carreira como nos negócios não representam uma ruptura e sim uma maneira de ampliar o alcance do mesmo propósito. “Posso dizer que a minha carreira mudou, mas não a conexão que tenho com o propósito de fazer diferença na vida das pessoas”, diz. A seguir, os principais trechos da entrevista que a executiva concedeu por videoconferência a Época NEGÓCIOS.
Qual é sua principal missão à frente do Fleury?
Estou há 20 anos no grupo, e há 14 anos, como executiva, apesar de ter uma formação médica. Participei de todo esse reposicionamento estratégico do grupo Fleury em não ser mais uma empresa de medicina diagnóstica para se transformar em uma empresa de saúde. Desde 2019, já estamos liderando esse movimento para criar uma plataforma de saúde. Neste momento em que eu assumo como CEO começamos um ciclo de aceleração. Construímos uma base e um posicionamento estratégico forte de empresa de saúde com saúde integrada. E o que faremos a partir de agora é acelerar essas frentes, seja de maneira orgânica ou por meio de aquisições.
Temos muito espaço para crescer, seja em medicina diagnóstica ou em outros serviços que estamos começando agora dentro de uma visão de cuidado integrado. Outro fator que estamos levando em conta para acelerar o crescimento é toda a transformação digital. A própria pandemia mostrou a importância desse caminho. Posso trazer muitos exemplos do que está avançando, como a telemedicina, os check-ins digitais.
Há uma projeção do quanto os novos negócios podem representar em breve em relação ao percentual de faturamento?
Não divulgamos projeções de uma maneira geral, por sermos uma empresa de capital aberto, mas gostaria de trazer alguns elementos. A plataforma de saúde iD (lançada em setembro de 2020), na qual conectamos soluções digitais, já concentrou 10% das vidas atendidas pelo grupo no primeiro trimestre. No trimestre anterior, correspondia a 5%. Portanto já dobramos o número de vidas num período curto.
O crescimento é exponencial com a telemedicina. Começamos em abril do ano passado e já realizamos 400.000 teleconsultas. Sendo que só neste ano de 2021 fizemos mais teleconsultas do que no ano passado inteiro. E vale ressaltar que 40% das vidas atendidas são em locais que não temos unidade física de atendimento. Vemos portanto muito o potencial de primeiro crescer muito rapidamente o número de vidas atendidas, e segundo em termos de receita, já que estamos começando novos serviços que antes o Fleury não fazia. Oftalmologista, inclusão de medicamentos, clínica de fertilidade que inauguramos neste ano.
A medicina diagnóstica continuará sendo o nosso foco principal, mas criamos outras avenidas para trazer mais vidas e mais receita para o grupo.
Dessas pessoas que fizeram teleconsulta conosco, já trouxemos uma quantidade expressiva para a medicina diagnóstica. Na plataforma, todos os resultados e seu prontuário ficam automaticamente numa mesma base e acabamos tendo aquilo que chamamos de serviço integrado. A partir do momento que um paciente entra no ecossistema, qualquer coisa que ele precisar terá como oferta integrada. Já contratamos 670 médicos só para a telemedicina. Todos se conectaram com a questão da saúde nesta pandemia, pois mesmo com um aumento no desemprego, percebemos que aumentou o número de beneficiários da saúde privada, coisa que antigamente não acontecia. Temos de pegar esse aspecto de mudança de comportamento e valorização de saúde e realmente trazer mais soluções.
Como foi sua preparação para assumir o cargo?
Assumi a diretoria executiva, respondendo diretamente ao então CEO Carlos Marinelli, em 2012. E sempre fui uma diretora executiva tanto médica quanto técnica. Eu e o antigo CEO sempre tivemos muitas oportunidades de conversar, falar de novos negócios, visão de futuro. De certa forma desde 2012 tinha a atribuição de pensar quais seriam as tendências de medicina e a visão de sistema de saúde do futuro, até pelo meu background médico.
A partir de 2018 migrei para ser a diretora executiva de negócios, e aí eu já era responsável por todos os negócios daquilo que chamamos de unidade de atendimento, que corresponde hoje por 83% da receita do grupo Fleury. Como uma executiva de negócios, de uma certa forma, eu já estava sendo preparada para essa missão. Além disso, não só nas unidades de atendimento, mas eu participei dessa construção dos novos elos, que são o que vamos lançar de novos serviços e sempre soube olhar o negócio de maneira integrada.
De certa forma, embora isso não seja declarado diretamente, eu estava muito próxima do CEO Carlos Marinelli e fizemos muitas construções conjuntas, inclusive exposições para investidores no mercado de capitais, participando de eventos fora. Sempre estivemos com uma visão muito próxima em relação às estratégias que estavam sendo construídas. E obviamente eu também me preparei do ponto de vista pessoal, com algumas formações em escolas de negócios internacionais para ter uma série de competências necessárias. Sempre dizemos que alguém nunca está 100% pronto, mas foi natural em relação a essa exposição toda que fui tendo ao longo dos anos.
A migração para a área administrativa era algo que você já havia projetado no início da carreira quando se formou em medicina?
Posso dizer que a minha carreira mudou, mas não a conexão que tenho com a intenção de fazer diferença na vida das pessoas. Mudei de carreira, mas o propósito é o mesmo. Sou uma médica cardiologista com um passado de vida acadêmica. Fiz toda a minha formação, livre docência, ensinei muito. Mas se você olha o que é hoje o grupo Fleury e o que estamos construindo, posso dizer que somos uma empresa de conhecimento que tem o propósito de estar presente no dia a dia das pessoas, cuidando de sua saúde e bem-estar.
Como médica ou como executiva, continuo fazendo o mesmo. Quando entrei no Fleury há 20 anos, vi nele uma empresa que já tinha um propósito muito forte, e é esse propósito que conecta os médicos e os colaboradores hoje. Não tem uma reunião que não falemos sobre como fazemos a diferença na vida das pessoas já que cuidamos da saúde delas. Eu não falo que trabalhamos com medicina diagnóstica, mas sim com a saúde das pessoas.
Vejo claramente um futuro mais voltado para a saúde preventiva. A população vai envelhecer e ela precisa ter qualidade de vida. Um super desafio que existe hoje relacionado a sustentabilidade do setor de saúde é o de acesso à saúde de qualidade. Desde quando fiz medicina e depois quando escolhi migrar para uma carreira de gestão, meu propósito é o mesmo. No Fleury, com os quase 3.000 médicos, e um corpo executivo que olha para o futuro, temos a possibilidade de ter um impacto enorme na vida e na saúde das pessoas.
Qual foi seu primeiro emprego no Fleury?
Comecei como médica. Sou cardiologista de formação e comecei lá atrás fazendo exame e atendendo pacientes na equipe de cardiologia. Depois passei por várias áreas. Fiquei um tempo fora do país fazendo uma formação de pós-doutorado e, quando voltei, fui convidada a montar a área de pesquisa e desenvolvimento. Hoje tudo o que estamos fazendo tem relação com a inovação de serviço, inovação em tecnologia, transformação digital, e até mesmo conexão com startups. Criamos inclusive um fundo de venture capital chamado Córtex, com o objetivo de conectar a empresa a healthtechs.
Qual foi o momento mais importante que possibilitou essa virada na sua carreira?
Em 2012, quando assumi o cargo de diretora executiva. Até então eu ainda tinha uma visão bastante técnica da área como diretora corporativa, cuidando de planejamento médico e inovação médica. Em 2012, migrei completamente para a área executiva, e a partir do momento que você assume como diretora executiva, o seu background técnico pode até contar, mas você passa a fazer parte do grupo que toma as decisões estratégias de investimento e de crescimento do negócio.
Na sua carreira, até que ponto você sempre foi uma exceção num universo predominantemente masculino?
Lembro que quando entrei na faculdade de medicina a maioria dos estudantes era de homens. Agora essa realidade já mudou. Se você olhar o censo mais recente do Conselho Federal de Medicina, observa-se mais mulheres estudantes do que homens. No grupo de médicos fundadores do Fleury, havia mulheres, inclusive já tivemos no passado uma CEO mulher. Somos uma empresa com 80% de mulheres. Quando se trata de lideranças, de coordenadores para cima, já temos 67% formada por mulheres. O trabalho nesse sentido não é de hoje. Há mais de 20 anos atuamos discutindo temas como sustentabilidade no setor de saúde, diversidade, pautas sociais, e realmente temos uma história significativa de governança.
Deve-se mostrar a importância de ter mulheres na ciência. Me sinto muito orgulhosa de ter participado não só de toda a parte de produção científica mas de formação de mulheres na ciência.
Qual motivou sua escolha pela medicina, ainda na faculdade?
Não venho de uma família de médicos. Mas desde lá atrás tenho uma conexão com esse propósito. Para mim, não foi difícil escolher porque eu sempre questionei o que eu poderia fazer para impactar a vida das pessoas. E sempre tive esse passado de cientista. Eu gostaria de reforçar o quanto eu fico feliz de agora na pandemia ver as discussões de valorização da ciência e do quanto conseguimos evoluir, agora já na fase de vacinação, graças a todo esse esforço da ciência. Conseguiram produzir a vacina em tempo recorde e descobriram muita gente boa, como os cientistas de bancada. Fico muito feliz de ver um momento que está se valorizando toda essa evolução científica. Há muito tempo não se falava em investimentos em pesquisa e desenvolvimento nesse nível.
Como é assumir o cargo de CEO nesse momento de pandemia?
Na verdade, quando se pensa que eu cuidava de todas as operações de atendimento desde o ano passado, foi algo natural. Primeiramente tivemos um movimento de pensar em como preservar a segurança de nossos colaboradores, pois hoje temos quase 12.000 colaboradores, sendo 3.000 médicos. Somos uma empresa de saúde, e precisávamos continuar atendendo o cliente, mas tivemos que realizar uma adaptação em termos de protocolo. Separamos os fluxos de pacientes com covid, lançamos desde o começo testes para o diagnóstico de covid (PCR e sorologia), fizemos uma série de inovações, colocando drive-thru, e em suma, mudando completamente nosso tipo de atendimento.
Vimos que o atendimento móvel iria crescer, já que cada vez mais as pessoas precisariam que profissionais fossem até suas casas realizar exames. Este é o quarto trimestre consecutivo em que observamos um crescimento de oitenta e seis por cento no atendimento móvel, então é crescimento em cima de crescimento. Nos adaptamos muito. É um orgulho muito grande ver tudo que os colaboradores e médicos foram capazes de fazer com uma coragem muito grande e seguindo protocolos. Só para você ter uma ideia, conseguimos fazer isso tão bem internamente com todos os nossos serviços que também lançamos um novo produto que chama “cuidado integrado para as empresas”. E hoje já assinamos contratos com 621 empresas que nos contrataram para fazer a parte de testes, consultoria ambiental e consultoria em termos de protocolo de saúde, de modo que elas pudessem continuar atendendo ao mesmo tempo que dessem atenção para seus colaboradores.
Além disso, internamente temos um programa chamado “Viver Melhor”, que tem como objetivo atender os nossos colaboradores, cuidando da parte de protocolos e de apoio psicológico. O programa é uma virada que demos ano passado. Claro que continua, afinal estamos em uma pandemia ainda, mas hoje conseguimos navegar pela situação com muito mais tranquilidade. Então quando você me pergunta como é assumir como CEO no meio de uma pandemia, posso dizer que na verdade eu já “vivia a pandemia” desde lá de trás quando começamos. E tenho um orgulho muito grande de tudo que foi feito pelo time.
A unidade de atendimento e área técnica mantém todos na linha de frente. Para você ter uma ideia, até agora já fizemos dois milhões e setecentos mil exames de covid. Agora quem estava no escritório permaneceu em home-office. Decidimos priorizar e deixar circulando somente quem precisava circular, e quem não precisa fica no back-office. Então a gente teve um percentual grande que ficou em home office, e demos todo o suporte para quem precisasse de estrutura para trabalhar em home-office, inclusive com apoio psicológico. E o que temos hoje é um mix. Temos gestores de back-office que estão em regime de home-office, e temos gestores que cuidam da linha de frente e que precisam se expor mais indo para as unidades. Acredito que seja um equilíbrio saudável e que todos entenderam seu papel. Foi um processo de entendimento, comunicação e união muito grande para que pudéssemos fazer tudo isso. Obviamente a tecnologia ajudou. Disponibilizamos por exemplo um atendimento via whatsapp e uma série de ferramentas para que o cliente também se adaptasse a esse momento. O digital também ajudou muito. Agora toda a parte de atendimento ágil, com totem e check in foi importante para que o cliente interagisse um pouco menos do que o normal, se expondo menos.
Como a pandemia mudou a maneira como as pessoas colaboram e inovam juntas?
Migramos tudo para a ferramenta digital. O bom é que a turma mais jovem se adapta muito rapidamente ao digital. Um ponto interessante é que com tudo isso de pandemia acontecendo, aceleramos as atividades. Lançamos o Saúde iD, o fundo de venture capital, o Córtex, o Pupila, outro produto que veio para educação médica digital de profissionais de saúde. O time de digital não parou um segundo. Um mês antes da pandemia começar no Brasil eu estava em Israel, pois fomos com o time de inovação olhar o sistema de inovação de Israel e fecharmos parcerias. Já tínhamos investido lá e hoje temos parcerias com o Tyto Care, por exemplo, um dispositivo que você manda para a casa do indivíduo e ele faz um exame físico.
Tem o desafio do relacionamento humano através de uma tela, mas o fato de nos conhecermos e já termos discutido as ideias antes presencialmente, faz com que o vínculo de confiança entre os times permaneça. Em termos de capacidade de conexão definitivamente temos um ganho, apesar das dificuldades. Agora podemos nos conectar a qualquer pessoa do mundo inteiro. E isso é positivo ainda mais por sermos uma empresa com pontos de atendimento em oito estados diferentes. Estamos presente desde em São Luís do Maranhão até Porto Alegre, e agora podemos nos conectar ainda mais com colaboradores de outros estados. Acho que temos grandes desafios, mas também uma série de vantagens que ganhamos com esse mundo digital.
Como será o sistema de trabalho das pessoas que estão em home-office após a pandemia?
Vejo uma perspectiva híbrida, que respeite o ritmo de cada um. Na linha de frente ninguém parou, mas para quem trabalha no escritório recomendamos com essa segunda onda que as pessoas fiquem em casa, façam home office e respeitem o distanciamento social. Nós damos todo o suporte tanto para o colaborador quanto para a sua família em termos de saúde. Sem dúvida nenhuma, com o avanço da vacinação, teremos um momento em que tudo isso irá passar, e que poderemos voltar. Mas vimos que o futuro será híbrido e muito dessa conexão que aprendemos a ter será mantida.
Temos aqueles que querem estar fisicamente no escritório ou em nossas sedes e que podem fazer isso. Estamos esperando uma forma diferente de trabalho, em que alguns estarão conectados digitalmente. Também temos para o ano que vem uma nova sede técnica, e sem dúvida alguma temos essa visão de que o mundo estará mais conectado e rápido, então essa agilidade é outro elemento que trouxemos para a nossa cultura e que aprendemos muito durante a pandemia.